Amar café é tipo amar gatos. Parece que você faz parte de uma espécie de seita e quando dois iguais se encontram a conversa empaca obsessivamente naquele assunto- normalmente entediando quem está em volta.
Por isso já me vi tantas e tantas vezes trocando figurinhas sobre preferências de café e, não raro, a conversa ruma para: é, eu acho que eu deveria tomar menos café, ou isso aqui é um vício, tentei parar um tempo e não consegui. Eu bem sei que não se trata de um hábito como qualquer outro. Confesso que já senti sintomas físicos em momentos nos quais fiquei sem café. Já tive dor de cabeça e névoa mental em dias de abstinência.
Acho que relutei em investigar mais o assunto porque tenho toda uma carga de memória afetiva com o café (como imagino ser o caso para a maioria dos brasileiros). Durante a minha infância nós passávamos as férias em uma minúscula e saudosa cidade do interior de São Paulo, quase na divisa de Minas. Quando a temporada ia chegando ao fim, sempre vinha o dia em que o meu pai ia comprar café de um produtor local e voltava com o porta-malas lotado de pacotes para levar para o escritório. Aquele cheiro transbordava e eu achava aquilo maravilhoso. Até hoje o aroma de um bom café me lembra aquela estrada aberta, cafezais em volta, sol no horizonte. Foi o receio de perder tudo isso que me fez adiar saber mais até agora. Mas enfrentei o medo e as notícias são boas. Pelo menos em parte.
Os livros do Michael Pollan estavam na minha lista há tempos: já me recomendaram muito o “Como mudar sua mente”, mas eu optei por começar pelo “Sob efeito de plantas” justamente para entender mais sobre a cafeína e como ela age no meu corpo.
O livro não fala só sobre café, ele é composto de 3 ensaios sobre 3 substâncias, suas histórias e seus papéis nas nossas vidas: o ópio, a cafeína e a mescalina. Achei a leitura super fluida e interessante, e faz a gente repensar um pouco o que consumimos e porquê. Também mostra com muita eloquência a arbitrariedade (e os interesses políticos e de mercado) por trás de demonizarmos algumas substâncias e normalizarmos outras. Acho que o exemplo mais óbvio é o capítulo sobre o ópio. O autor escreveu esse ensaio nos anos 90, no auge da guerra contra as drogas nos EUA. Época na qual fazer um chá com a papoula do ópio (papaver somniferum) era ilegal, mas na qual a Purdue Pharma estava começando a inundar o mercado com OxyContin (o que iria causar uma epidemia de opioides de enormes proporções- para quem não conhece a história, tem uma minissérie no Netflix).
Mas vamos à cafeína. O que ela nos proporciona? A primeira parte interessante é que aquele ânimo que a gente sente ao tomar café de manhã não é imaginário, nem se restringe à expulsão do sono. Parece que a cafeína realmente promove um estado de consciência alterado, trazendo foco e um raciocínio mais linear. Citando o livro:
“Encontrei vários estudos conduzidos ao longo dos anos relatando que a cafeína melhora o desempenho em uma série de medidas cognitivas: memória, concentração, estado de alerta, vigilância, atenção e aprendizagem. Um experimento feito na década de 1930 descobriu que enxadristas sob efeito de cafeína tiveram desempenho significativamente melhor do que jogadores que se abstiveram. Em outro estudo, usuários de cafeína concluíram uma variedade de tarefas mentais mais depressa, embora tenham cometido mais erros; como um jornal colocou em seu título, as pessoas que tomam cafeína são “mais rápidas, porém não mais inteligentes”. Em um experimento de 2014, os indivíduos receberam cafeína logo após aprenderem algo novo se lembraram melhor do que os que receberam um placebo. Testes de habilidades psicomotoras também sugerem que a cafeína nos dá uma vantagem: em exercícios simulados de direção, ela melhora o desempenho, sobretudo quando o indivíduo está cansado. Ela também aprimora o desempenho físico em métricas como provas de tempo, força muscular e resistência. O consenso parece ser o de que a cafeína melhora o desempenho mental (e físico) em algum grau”
Aí nos deparamos com o primeiro possível lado desfavorável. Se você está fazendo algo que exige um modo de pensar mais amplo, não linear, talvez o cafezinho não seja uma boa pedida:
“Se a cafeína também aumenta a criatividade é, no entanto, outra questão, e há razões para duvidar disso apesar da crença fervorosa de Balzac. Ela melhora nosso foco e capacidade de concentração, o que com certeza melhora o pensamento linear e abstrato, mas a criatividade funciona de maneira muito diferente. Pode depender da perda de um certo tipo de foco e da liberdade de soltar a mente da coleira do pensamento linear…
…Essa forma mais difusa de atenção se presta à divagação, à livre associação e ao estabelecimento de novas conexões- fatores que podem nutrir a criatividade. Em comparação, a grande contribuição da cafeína para o progresso humano tem sido intensificar a consciência de holofote, ou seja, um processamento cognitivo focado, linear, abstrato e eficiente mais intimamente associado ao trabalho mental do que ao brincar. Isso, mais do que qualquer outra coisa, é o que torna a cafeína a droga perfeita não apenas para a era da razão e do Iluminismo, como também para a ascensão do capitalismo”.
Fiquei pensando nisso, na questão da criatividade. Tive vontade de tomar chá ao invés de café nos últimos dias (será que sou sugestionável?) e senti minha mente mais tranquila, menos acelerada, mais espaçosa, se é que dá pra dizer isso. E também achei que o crash de energia pós almoço foi menor. Tomei chás cafeinados (chá preto e chá verde), mas eles tem um teor de cafeína bem menor que o do café. Aliás o expresso realmente é uma bomba, não tinha consciência da ordem de grandeza da diferença para o coado.
Para comparação:
Quantidade de cafeína (esses números variam muito, não achei uma fonte realmente consistente, e dependem do método de extração, tipo de grão, de torra- fiquei aqui com a versão do Chat GPT, então não leve ao pé da letra)
Café tradicional: 40 a 60 mg por 100 ml
Café expresso: 100 a 250 mg por 100 ml
Chá verde: 10 a 30 mg por 100 ml
Chá preto: 20 a 50 mg por 100 ml
Chá mate: 15 a 40 mg por 100 ml
Voltando ao livro: em relação à saúde, as notícias também tem um saldo positivo:
“O consenso científico atual é mais do que tranquilizador- na verdade, a pesquisa sugere que o café e o chá, longe de serem prejudiciais à saúde, podem oferecer benefícios relevantes, desde que consumidos com moderação. O consumo regular do café está associado à diminuição do risco de vários cânceres (incluindo mama, próstata, colorretal e endomentrial), doenças cardiovasculares, diabetes tipo 2, doença de Parkinson, demência e, possivelmente depressão e suicídio. (Embora em altas doses possa causar nervosismo e ansiedade, e as chances de suicídio aumentem entre os que bebem oito ou mais xícaras por dia).
O café e o chá são a principal fonte de antioxidantes na dieta norte-americana, fato que, sozinho, pode dar conta dos muitos benefícios para a saúde oferecidos por eles. (E você pode usufruir desses antixoxidantes tomando café descafeinado.)”
O problema real viria da questão do sono. Como sabemos hoje, um sono de qualidade é um pilar essencial para nossa saúde. Por isso o autor foi conversar com o Matthew Walker, que escreveu “Por que nós dormimos”, onde ele cita a cafeína como uma das principais vilãs quando o assunto é dormir bem.
“Walker explicou que, para a maioria das pessoas, o “ciclo de vida” da cafeína costuma durar cerca de 12 horas, o que significa que 25% de uma xícara de café consumida ao meio-dia ainda está circulando no seu cérebro quando você vai para cama à meia-noite. O que pode muito bem ser suficiente para destruir seu sono profundo.
A cafeína não é a única causa de nossa crise de sono; telas, álcool (que é tão prejudicial para o sono REM quanto a cafeína é para o sono profundo), produtos farmacêuticos, horários de trabalho, poluição sonora e luminosa e ansiedade podem minar tanto a duração quanto a qualidade do nosso sono. Mas a cafeína está no topo ou quase no topo da lista de culpados”.
A boa notícia é que parece que até o Matthew Walker já relaxou um pouco a sua posição, desde que publicou seu livro:
“Fiquei aliviado ao saber que Walker, desde então, diminuiu um pouco sua condenação ao café. Em uma conversa recente, ele sugeriu que os benefícios comprovados do “uso moderado de café pela manhã” podem superar o custo para nossa saúde do sono. “Afinal de contas”, escreveu ele, “a vida é para ser vivida [até certo ponto]!”
A minha conclusão é que essa leitura não trouxe algo que vá mudar fundamentalmente minha relação com o café. Mas, assim como o Michael Pollan relata que aconteceu com ele após um período de 3 meses sem cafeína, talvez eu repense meus hábitos e leve mais a sério o poder de uma xícara de café (aquele expresso super curto e forte da Itália agora me dá arrepios de lembrar). Eu já vinha querendo tirar o café pós almoço da rotina por alguns motivos e isso parece mesmo uma boa ideia, mas a xícara da manhã não está ameaçada.
O que ficou claro para mim é que fazemos tantas coisas sem pensar, por força do hábito, que muitas vezes nem percebemos mais o que nos cai bem ou não. Em diversas ocasiões resolvi fazer mudanças que prenunciavam ser um sacrifício horrível e no fim me trouxeram um bem-estar enorme (no meu caso: parar de consumir leite e derivados, cortar o álcool, ter uma vida muito mais ativa). Sigo questionando e repensando, mas sem entrar na paranoia de encontrar a rotina perfeita.
Um pouco de invejinha de quem gosta de café... Nem dos chás eu gosto (só tomo as chamadas "infusões") Parece um mundo à parte!